Do desvio do processo civilizacional
Segundo o livro The Dawn of Everything de David Graeber e David Wengrow, a humanidade foi muito mais igualitária e menos bélica antes do processo civilizacional. Segundo nossas apreensões em ürmN, concomitante com o processo civilizacional, foi engendrada a Barreira Vibracional (ver o item “Da Barreira Vibracional”), que dificulta deveras a apreensão de ürmN e de diversas ampliações de consciência e liberdade cósmica.
O filósofo Martin Heidegger, em seu artigo “Das Ende der Philosophie und die Aufgabe des Denkens” diz que o projeto grego em constituir uma “metafísica” resultou na ciência e a ciência resultou na cibernética, o que é nefasto e gera, na parte final da obra heideggeriana, a investigação sobre o que é o pensar e como isso deve estar necessariamente envolvido com uma elaboração da escuta. Até aqui caminhamos com o filósofo. Seguindo por outro caminho a partir de agora, para nós, a tarefa é reiniciar o processo do pensamento de modo diferente do projeto grego. De fato, a cibernética resultou na atual Tecnologia da Informação (TI), que produz toda a atual sociedade governada por quem comanda os algoritmos, gerando um controle social inédito e terrivelmente coercitivo, mais do que antigos fascismos pré-cibernéticos. Vivemos em uma guerra total ou irrestrita, que envolve não apenas conflitos armados, mas guerras híbridas, incluindo guerra cognitiva, de modo que o controle usa as tecnologias disponíveis para controlar ainda mais a sociedade por meio de algoritmos, redes sociais etc.
Mas não basta rebootar o pensamento em um projeto diferente do grego, mas ir além do próprio pensamento. É claro que há obras no início da filosofia grega que ainda não haviam aderido ao projeto grego mais nefasto, a partir de Platão e Aristóteles, que multiplicariam respectivamente dualidades e taxonomias, cujo sintoma mais grave e sintomático é a proposta de expulsão dos poetas da República. Obras como a de Parmênides e Heráclito estão, possivelmente, livres desse projeto nefasto. No entanto, a título de prudência, vamos evitá-los também, permitindo apenas uma leve inspiração. A civilização egípcia, anterior à grega, com seus reis-faraós e o início de um controle do imaginário a partir da invenção da “transcendência (dos deuses)”, também deve ser evitada. Mesmo as sabedorias ditas “orientais”, como o hinduísmo e o taoismo, vão estabelecer uma dualidade entre manifesto e imanifesto, que também devemos evitar, ainda que seja provável que alguns deles tenham se aproximado de algo como ürmN, mas não dispuseram de expressões adequadas. Tudo isso implica em evitar elaborações que versem sobre “ontologia”, “epistemologia”, “sagrado”, apologias em quaisquer ideologias políticas, a elaboração de uma ética, muito menos de uma utopia, ou seja, quaisquer tipos de modelo, método etc.
Tudo isso implica na evitação da academia, a invenção da Igreja para afastar qualquer desenvoltura mística. Toda sabedoria que minimamente interessa é cultivada em pequeníssimos grupos, sem nenhuma reverência a textos, que são meras anotações para recordar os melhores momentos da conversa embriagada (seja por vinho e/ou cosmicidade) entre amigos, como nos grupos herméticos, segundo o historiador Wouter Hanegraaff em seu Hermetic Spirituality and the Historical Imagination.
A partir de ürmN, não nos interessa apreender uma moral, sequer uma ética. Mesmo a Ethica mais sofisticada parte de uma ontologia de “imanência pura”, o que já se torna um problema, pois evitamos ontologias. E tal Ethica é um jogo não assumidamente moral que faz apologia aos “aumentos de potências” ou “alegria” em detrimento da “diminuição de potência”, evidenciando seu recorrente e infantil medo do vazio. O vazio é apenas um nome que sugere um desconhecido, que, por sua vez, ressoa, de certo modo, com ürmN, ou, como coloca o escritor David Peak: o colapso da separação entre interior e exterior, em que se celebra o fato de não “sabermos” nada, é o próprio espetáculo do vazio. É justamente esse colapso que prescrevemos para desdobrar campos problemáticos como o que o escritor Jorge Baron Biza anuncia em O deserto e sua semente: “Percebo que essa abertura permanecerá pelo resto da minha vida. Não sei o que vou fazer com ela, mas acima de tudo não sei o que ela vai fazer comigo”. É preciso, nesse caso, cultivar certo devir-abismo, de modo que turve a relação sujeito-objeto de eu-abismo.
Nós não nos guiamos por nenhuma ética, mas assumimos o gosto pela estranheza inerente, ou seja, estamos dispostos a nos relacionar com “monstruosidades”, atratores-monstro que possam emergir em nosso campo. Assim, nos aproximamos do poeta Arthur Rimbaud em sua assim chamada “Lettre du voyant”: “Que exploda em seu salto por entre as coisas inauditas e inomináveis: outros horríveis trabalhadores virão, e começarão pelos horizontes em que o outro se perdeu!” ou de Lautréamont, em seu Os cantos de Maldoror: “Que vem fazer nesta terra, onde estão os malditos? (...) Tu, jovem, não desespera; pois tens um amigo no vampiro, apesar da tua opinião contrária” e do escritor Georges Bataille: "É tempo de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É tarde demais para se preocupar em ser razoável e instruído - o que levou a uma vida sem atrativo. Secretamente ou não, é necessário tornarmo-nos totalmente outros ou cessar de ser. (...) Nos mundos desaparecidos, foi possível se perder no êxtase, o que é impossível no mundo da vulgaridade instruída".
Os autores que recuperam uma sabedoria africana geralmente utilizam a filosofia grega e seu desdobramento ocidental como ponto de referência em suas operações conceituais: dizer que o Egito Antigo cunhou o termo para “filosofia” antes dos gregos ainda mantém os termos gregos como estruturação do debate, ao invés de propor novos modos de pensar e como ir além do próprio pensamento. Assim como o filósofo Karl Marx, que se dedicou mais a estudar o capitalismo do que propor uma alternativa, o filósofo Gilles Deleuze, conjuntamente com o clínico Félix Guattari, em seu conceito de rizoma, descreveram mais como funciona o estágio do capitalismo de sua época do que criaram uma alternativa a ele, confessando ser o capitalismo sempre neocapitalismo. Mesmo o rizoma, termo tomado de empréstimo da botânica, em que o rizoma é facilmente consumido por fungos, na verdade é apenas uma dialética elevada à enésima potência. Na crítica à religião, revela-se outra percepção diferente que se expressa nos textos, ou seja, na verdade, a luta de classes é o ópio do povo, posto que a Espiral do Controle sempre colocou um grupo contra o outro, mas isso nunca foi o “motor da história”, apenas sua aparência imposta pela Espiral, sem que nenhum grupo nunca tenha alcançado a vitória real (ver item “Da Barreira Vibracional” no tocante à luta e o poder). Não bastasse isso, o marxismo gerou uma surpreendente crença (seria mesmo não-religiosa?) em uma profecia (obviamente, falsa, como se constata historicamente e mesmo nas previsões mais otimistas): que o futuro terminará em “comunismo”. Também a proposta clínica de esquizoanálise de Deleuze e Guattari se tornou apenas um apêndice da psicanálise, orbitando em torno dos mesmos dramas, fracassando, no contemporâneo, ao se diluir seu uso inócuo em propostas identitárias, que, em sua maioria, contradizem suas bases teóricas e são orientadas de modo insidioso pela Espiral do Controle (ver item “Da Barreira Vibracional”) para gerar uma divisão na sociedade, de modo que cada lado se defina sobretudo pela sua oposição ao outro, tornando a relação quase impossível. O “esquizo”, espécie de anti-herói celebrado pela esquizoanálise, se expressa muito atualmente nos líderes políticos “antissistema”, que “dialogam” por meio de slogans, surpreendendo seus adversários com o inesperado, incluindo a mudança de escala brusca no campo semântico. Ao celebrar a “alegria”, a esquizoanálise, justamente criada por um suicida e um depressivo crônico, se torna mais uma produtora de cadáveres (sobre o campo problemático do suicídio, ver item “Das pulsações cósmicas”).
Eivados das apreensões em ürmN, não há propriamente uma necessidade de uma “clínica”, que geralmente está associada a uma demanda de adequação social e/ou de “diminuição de sofrimento”. Nossa abertura à estranheza inerente a partir de meditação, estudo e cultivo da egrégora já é mais do que “clínico”, alcançando novos modos de viver e apreensões para além do conceito de “vida”, ainda que não se deva estabelecer metas ou mesmo sugerir benefícios específicos de tal abertura, dado o âmbito da não sapiência envolvido necessariamente nesse processo .
Não há aqui nenhum tipo de misantropia ou nenhum dos outros itens do “esquema antrópico”, como o antropocentrismo e o antropomorfismo, que o filósofo Eugene Thacker, em seu Horror of Philosophy – Tentacles Longer Than Night, elenca a partir do indiferentismo, proposto por H. P. Lovecraft, que é cultivar certa indiferença no lugar do pessimismo, que, para o escritor, é tão ilógico quanto o otimismo.
É justamente a literatura e o audiovisual de terror que são as instâncias que melhor colocam campos problemáticos no contemporâneo, como expressa, de outra forma, a xenoarqueologia do pesquisador Ben Woodard em On an Ungrounded Earth, no sentido de estar aberto para a radical estranheza inerente. No entanto, o terror se expressa enquanto uma intensificação excessiva do medo apenas para o “indivíduo” que emerge no processo civilizacional e quer “manter o controle” na sociedade. Se ürmN nos atravessa/constitui, o terror se torna mais um gênero fascinante do que um estado emocional, ainda que seja óbvio para nós a inevitabilidade da vertigem.
Sendo assim, é preciso abdicar, dentro do possível, de todo o arcabouço civilizacional para apreender as informações em/de ürmN de modo mais adequado. O que queremos dizer com “dentro do possível”? Não é necessário se mudar para a floresta e parar de usar recursos tecnológicos, nem “desaprender” – se é que tal empreendimento seja possível - as práticas culturais às quais estamos inseridos. O que propomos é fazermos o exercício o mais flexível e intensivo possível de nos desviarmos dos processos culturais, linguagem, cognição etc. para termos a maior abertura possível para as informações em/de ürmN. Tal relativização é alcançada através de meditação e perseverança na egrégora, sempre mantendo o espírito crítico em relação a tudo.
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